ENTRE A DELIBERAÇÃO E A DELAÇÃO: IMPARCIALIDADE JUDICIAL, VERSÕES CONFLITANTES E O RISCO DE UM PRECEDENTE PROCESSUAL FRÁGIL

Uma breve análise da nossa situação judicial.

ANÁLISE JURÍDICA

Diego de Souza Barbosa

9/22/20257 min read

woman holding sword statue during daytime
woman holding sword statue during daytime

O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF) abriu-se sob o signo da excepcionalidade e da desconfiança probatória. A Procuradoria-Geral da República (através do Procurador, Paulo Gustavo Gonet Branco) afirmou, em setembro de 2025, que a acusação comprovou uma tentativa de golpe liderada por Bolsonaro, com “escalada verbal” que instigou animosidade contra o STF, além disso, rememorou planos como o chamado “Punhal Verde e Amarelo”, no qual se aventaram até homicídios do atual presidente (Luiz Inácio Lula da Silva), do vice presidente (Geraldo Alckmin) e do Ministro do Supremo Tribunal federal (Alexandre de Moraes). Ainda que graves, tais assertivas se apoiam, em larga medida, na colaboração premiada do ex-ajudante de ordens Mauro Cid, colaboração essa que se tornou o epicentro do debate por ter se mostrado instável e contraditória.

A instabilidade não é impressão retórica. Em sessão de março de 2025, o Ministro Luiz Fux registrou “muita reserva” à colaboração justamente porque Cid apresentou nove versões distintas, segundo o Ministro Fux, “tanto houve omissão que foram feitas nove delações”. A imprensa registrou a perplexidade, destacando que o ministro enxergou “muita reserva” nas sucessivas versões. Antes, no ano de 2024, áudios publicados pela Veja mostraram Cid dizendo que teria sofrido pressão da Polícia Federal para incriminar Bolsonaro, o que motivou nova oitiva e sua prisão pelo Ministro Alexandre de Moraes, no retorno ao STF, Cid recuou e afirmou que os áudios eram apenas “desabafo” e que não houve coação. Esse ano, novas reportagens indicaram inconsistências quanto ao uso de redes sociais e à veracidade de mensagens, revelando mais um elemento de fragilidade da narrativa. A defesa de Cid nega coação e sustenta a validade do acordo, mas criminalistas apontam que tais gravações levantam dúvidas que mereceriam apuração formal.

Do ponto de vista normativo, não espaço para romantizar delações mutantes. A Lei nº 12.850/2013 (Lei de Organização Criminosa), em seu art. 4º, §16, dispõe que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador”. A doutrina e a jurisprudência são firmes ao reconhecer que a delação é meio de obtenção de prova, não prova autossuficiente. Nesse sentido, cabe destacar o trecho da decisão do Ministro Gilmar Mendes no HC 181978 Agr/RJ em 10/11/2020:

(...) A colaboração premiada, como meio de obtenção de prova, não constitui critério de determinação, de modificação ou de concentração da competência. Assim, ainda que o agente colaborador aponte a existência de outros crimes e que o juízo perante o qual foram prestados seus depoimentos ou apresentadas as provas que corroborem suas declarações ordene a realização de diligências (interceptação telefônica, busca e apreensão etc.) para sua apuração, esses fatos, por si sós, não firmam sua prevenção. STF. Turma. HC 181978 AgR/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/11/2020.

Ainda, o Superior Tribunal de Justiça também já consolidou entendimento de que a colaboração exige corroboração autônoma, sob pena de nulidade, vejamos:

(...) Considerando os argumentos apontados, e principalmente pelo fato de a medida de busca e apreensão ter sido decretada apenas com base em acordo de colaboração premiada, o que ofende o disposto no art. 4°, §16, da Lei nº 12.850/2013, a 6ª Turma do STJ concedeu habeas corpus para anular todas as provas colidas e determinar o trancamento da ação penal.

Importante destacar o pensamento do professor e advogado Gustavo Badaró, que, de forma brilhante e coesa, estabelece com precisão a diferenciação entre meios de prova e meios de obtenção de prova:

Enquanto os meios de prova são aptos a servir, diretamente, ao convencimento do juiz sobre a veracidade ou não de uma afirmação fática (por exemplo, o depoimento de uma testemunha, ou o teor de uma escritura pública), os meios de obtenção de provas (por exemplo, uma busca e apreensão) são instrumentos para a colheita de elementos ou fontes de provas, estes sim, aptos a convencer o julgador (por exemplo, um extrato bancário documento encontrado em uma busca apreensão domiciliar). Ou seja, enquanto o meio de prova se presta ao convencimento direto do julgador, os meios de obtenção de provas somente indiretamente, e dependendo do resultado de sua realização, poderão servir a reconstrução da história dos fatos.

Quando o eixo da acusação se apoia em relatos que oscilam, ora acrescentando personagens, ora reformulando fatos, a exigência de evidência externa robusta torna-se imprescindível, sob pena de afronta ao devido processo legal (Constituição Federal, art. 5º, LIV) e à presunção de inocência (art. 5º, LVII).

Mais grave ainda é a situação da imparcialidade do julgador, o Ministro Alexandre de Moraes. O Código de Processo Penal, em seu art. 252, IV, veda a atuação do juiz quando ele próprio ou parente próximo for parte ou diretamente interessado no feito. O Código de Processo Civil, art. 144, IV, consagra o mesmo impedimento objetivo. A doutrina ressalta que tais hipóteses são taxativas e geram presunção absoluta de parcialidade. No caso em análise, Alexandre de Moraes atuou como relator do inquérito e do processo, além de integrar o colegiado julgador, figurando nas narrativas acusatórias como potencial vítima do plano “Punhal Verde e Amarelo”. Tecnicamente, isso abre hipótese clara de impedimento. Apesar disso, o STF rejeitou pedidos de impedimento e suspeição, sustentando que a vítima seria a coletividade, e não o relator individualmente, o que demonstra ainda mais a insegurança jurídica que vivemos no Brasil. Tal interpretação, contudo, relativiza um impedimento objetivo previsto em lei, criando o que parte da doutrina tem chamado de “impedimento relativo ou fluido”, esvaziando a garantia da imparcialidade.

A crítica jurídica aqui não se confunde com benevolência a qualquer ato antidemocrático. Ela aponta que a fortaleza do Estado de Direito depende do rigor das formas. Se a Corte permite que uma delação contraditória ocupe o lugar de prova axial, sem corroboração inequívoca, e, ao mesmo tempo, relativiza a cláusula de impedimento objetivo para manter no caso o relator que também figura como “potencial vítima”, cria-se um precedente delicado: a mensagem de que fins institucionalmente nobres autorizam atalhos processuais. Justiça não se legitima pela convicção, mas pela prova corroborada e pela imparcialidade intransigente, exatamente o que a Constituição e as leis exigem.

Conforme se verifica nos autos, as divergências e oscilações presentes nos depoimentos do colaborador Mauro Cid não são meros detalhes formais, mas elementos centrais que comprometem a consistência da acusação. A lei brasileira é clara: a colaboração premiada, por si só, não serve de alicerce exclusivo para uma condenação, devendo ser necessariamente corroborada por provas independentes e robustas. Resta-nos, portanto, acompanhar os últimos capítulos desse drama emblemático, gestado em clima de polarização e marcado por um viés que se revela puramente político, justo às vésperas de mais uma eleição presidencial nesta instabilidade crônica que insiste em assolar a nação, esse complexo e turbulento cenário a que muitos já se referem, com amarga ironia, como a “bagunça chamada Brasil”.

Graduado em Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas no ano de 2023, Pós-graduando em Direito Processual Civil pela Escola Paulista da Magistratura, formado em Tecnólogo de Segurança Pública pela Escola Superior de Soldados da Polícia Militar do Estado de São Paulo no ano de 2007, formado em Empreendedorismo pela Universidade Cidade de São Paulo no ano de 2020, é funcionário público estadual há 19 anos e integra o corpo docente da Polícia Militar do Estado de São Paulo, ministrando aulas de Direitos Humanos e Ações Afirmativas.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br Acesso em: 3 set. 2025.

BRASIL. Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal. Disponível

em: http://www.planalto.gov.br Acesso em: 3 set. 2025.

CARTA CAPITAL. PGR acusa Bolsonaro de tentar golpe e atentar contra o STF. 2025. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/leia-a- integra-da-manifestacao-da-pgr-no-julgamento-de-bolsonaro-no-stf/ Acesso em: 3 set. 2025.

CNN BRASIL. Fux sobre Cid: “tanto houve omissão que foram feitas nove delações”. 2025b. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br Acesso em: 3 set. 2025.


CNN BRASIL. Defesa de Mauro Cid nega coação em delação. 2025c. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br Acesso em: 3 set. 2025.

EL PAÍS. Brasil contra Bolsonaro: claves de un juicio histórico. 2025. Disponível em: https://elpais.com/america/2025-09-02/brasil-contra-bolsonaro-claves-de- un-juicio-historico-por-intento-de-golpe-de-estado.html Acesso em: 3 set. 2025.

O GLOBO. Fux critica inconsistências da delação de Mauro Cid. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2025/03/25/fux- apresenta-divergencias-durante-julgamento-e-critica-delacao-de-mauro- cid.ghtml Acesso em: 3 set. 2025.

INFO MONEY. Julgamento de Bolsonaro: entenda a polêmica sobre a delação de Mauro Cid. 2025. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/politica/julgamento-de-bolsonaro-entenda-a- polemica-delacao-de-mauro-cid/ Acesso em: 3 set. 2025.

SITE STF. STF rejeita impedimento de Alexandre de Moraes em julgamento de Bolsonaro. 2025. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/presidente-do-stf-rejeita-impedimento-de- ministros-para-julgar-denuncia-contra-bolsonaro/ Acesso em: 3 set. 2025.

MEU SITE JURÍDICO. O impedimento relativo ou fluido: a nova tese do STF. 2024. Disponível em: https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2024/06/03/a-nova-tese-do-stf- o-impedimento-relativo-ou-fluido/ Acesso em: 3 set. 2025.

MIGALHAS. Impedimento e suspeição no STF: relatoria de Alexandre de Moraes. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/427234/impedimento-e-suspeicao-no-stf- relatoria-de-alexandre-de-moraes Acesso em: 3 set. 2025.

NEXO. As inconsistências da delação de Mauro Cid. 2025. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2025/07/01/stf-julgamento-golpe- bolsonaro-delacao-mauro-cid-influencia-defesa-dos-reus Acesso em: 3 set. 2025.

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 387.

VEJA. Áudios de Mauro Cid levantam suspeita de pressão em delação. 2024. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/em-audios-exclusivos-mauro-cid- ataca-alexandre-de-moraes-e-a-pf/ Acesso em: 3 set. 2025.

VEJA. Novas inconsistências da delação de Mauro Cid. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/maquiavel/a-tentativa-furada-de-mauro-cid-as- vesperas-de-julgamento-sobre-golpe/ Acesso em: 3 set. 2025.